segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Um sábio para os Tempos: O papel e a obra de Frithjof Schuon [parte I]

Depois de apresentarmos dois artigos em memória de Guénon e de Coomaraswamy, fechamos agora este ciclo com o terceiro dos grandes impulsionadores da recuperação da Tradição e da Sophia Perennis no mundo moderno Ocidental, Frithjof Schuon. Para tal apresentamos no Sabedoria Perene uma tradução de um trabalho de Harry Oldmeadow publicado no Volume 4, Nº2 da Sophia: The Journal of Tradicional Studies em 1998. Deixamos o nosso profundo agradecimento ao Dr. Harry Oldmeadow pela autorização cedida para a sua publicação, relembrando que a tradução é da total responsabilidade do tradutor e que esta não foi verificada pelo autor. Espero ter conseguido manter a clareza com que expõe brilhantemente a obra e pensamento de Frithjof Schuon, enquadrando-a no seguimento dos seus predecessores. A publicação foi separada em duas partes, a primeira delas apresentada de seguida.



Se Guénon foi o grande expositor das doutrinas metafísicas e Coomaraswamy o inultrapassável académico e conhecedor da arte Oriental que iniciou a sua exposição metafísica recorrendo à linguagem das formas artísticas, Schuon parece o próprio intelecto cósmico impregnado por energia de graça divina, pesquisando toda a realidade em torno do homem e elucidando tudo o que diz respeito à existência humana à luz do conhecimento sagrado.
Seyyed Hossein Nasr
[1]


Uma nota pessoal

Em meados dos anos setenta, trabalhava sem objectivos num revista semanal Australiana que, entre outras coisas, escrevia críticas a livros de várias áreas recentemente publicados. Um dia deparei-me com uma crítica ao livro The Sword of Gnosis, uma antologia de textos sobre “Metafísica, Cosmologia, Tradição e Simbolismo”, editado por Jacob Needleman. A crítica era suficientemente cativante para que eu tivesse procurado obter uma cópia do livro. Foi com um crescendo de excitação que encontrei os primeiros textos de várias figuras cujas obras eu viria a conhecer em profundidade em anos vindouros – René Guénon, Titus Burckhardt, Martin Lings, Seyyed Hossein Nasr, entre outros. Mas o efeito dos ensaios de Schuon foi bastante impressionante: aí, na exposição dos princípios e doutrinas tradicionais, existia uma claridade, uma radiância e uma profundidade que parecia, e ainda o parece, como que de uma ordem quase milagrosa. Nars escreveu sobre o aparecimento do primeiro livro de Guénon (Introduction générale à l'étude des doctrines des hindoues, 1921):

Foi como que um raio de um trovão, uma abrupta intrusão no mundo moderno de um conjunto de conhecimento e uma perspectiva radicalmente afastada do clima e da visão do mundo prevalecente, completamente oposta a tudo o caracterizava a mentalidade moderna.[2]

Esta foi precisamente a forma como os ensaios de Schuon me atingiram. A minha vida intelectual e espiritual mudou para sempre. Naquela altura, os livros de Schuon eram muito difíceis de obter. Assim, foi com algumas dificuldades que rapidamente acumulei, não só as obras de Schuon, mas também as de outros exponentes contemporâneos da sophia perennis. Não tardou até que sentisse a força do comentário de Ananda Coomaraswamy que, “se entrarmos realmente neste mundo, podemos não querer regressar; nunca mais estaremos satisfeitos com aquilo que estávamos habituados a pensar como ‘progresso’ e ‘civilização’.”[3] E assim foi!

Depois de abrir caminho, a um ritmo alucinante, pelas obras de Schuon à medida que as obtinha, decidi que deveria abraçar um estudo muito mais sistemático, estudo este que seria feito com maior facilidade num meio universitário. Depois de uma ausência de nove anos, regressei à universidade onde completei uma tese intitulada Frithjof Schuon, the Perennial Philosophy and the Meaning of Tradition. Desde essa altura continuei a estudar e a reflectir sobre os seus trabalhos. Como professor descobri a minha vocação: tornar disponível e explicar, na medida das minhas capacidades e para aqueles capazes de entender, a sabedoria perene preservada em todas as tradições religiosas e mitológicas integrais, e tornar mais conhecida a obra de Schuon e outros tradicionalista que procuraram preservar a sabedoria das eras através da explicação dos seus princípios directores. A minha própria peregrinação espiritual, até à altura bastante intermitente e confusa, ganhou também um novo propósito e direcção. Fiquei profundamente impressionado pelo aviso de Schuon,

Se a metafísica é algo de sagrado, isso significa que não poderia ser… limitada à estrutura dos jogos da mente. É ilógico e perigoso falar sobre metafísica sem estar preocupado com os requisitos morais que esta requer, cujos critérios são, para o homem, o seu comportamento em relação a Deus e em relação ao seu vizinho.[4]

É relativamente convencional fazer alegações hiperbólicas sobre os recentemente falecidos. No entanto, posso dizer sem qualquer hesitação, que os textos de Frithjof Schuon mudaram profundamente a minha vida – não só a sua trajectória exterior mas, mais importante, a vida interior, sem a qual as nossas acções visíveis não são mais do que cascas vazias.

É uma honra única responder ao convite do editor para contribuir para este número da Sophia dedicado a Frithjof Schuon. Junto-me a muitos outros que tiveram o privilégio de ler os seus livros e cujas vidas foram assim transformadas, dando graças a Deus pela sua vida e trabalho. Lamento a perda desta grande alma. O que se segue é baseado em excertos retirados de um futuro livro sobre tradicionalismo, ou perenialismo como é frequentemente designado nos Estados Unidos. Ofereço-o como uma pequena contribuição e como um sinal da minha dívida incalculável para com Frithjof Schuon. Adicionalmente, gostaria também de expressar a minha gratidão a outros académicos e escritores que têm ajudado a difundir o trabalho de Schuon a uma maior audiência: para além dos tradicionalistas referidos ao longo das próximas páginas, deve ser feita referência a Whitall Perry, William Stoddart, Huston Smith e James Cutsinger.[5]

Schuon e os seus precursores, René Guénon e Ananda Coomaraswamy

René Guénon, Ananda Coomaraswamy e Frithjof Schuon tiveram papéis diferentes, mas complementares, no reafirmar da filosofia perene, cada um cumprindo uma função correspondente às suas diferentes sensibilidades e dons. Guénon ocupou uma posição especial em virtude de ter sido o primeiro a articular os princípios fundamentais metafísicos e cosmológicos, através dos quais a sophia perennis pode ser redescoberta e novamente expressa no Ocidente.

Schuon reconhecia Guénon como “um intérprete providencial ao nível doutrinal” para o Ocidente moderno.[6] De uma forma semelhante, Jean-Pierre Laurant refere-se ao “papel hierático” de Guénon.[7] A crítica de Guénon no “reino da quantidade” providencia também a plataforma a partir da qual críticas mais detalhadas puderam ser mais tarde elaboradas por outros tradicionalistas. A sua reacção ao modernismo integrou o seu papel e constitui um tipo de limpeza do terreno, permitindo-nos compreender

Alguns dos mais negros enigmas do mundo moderno, enigmas que o próprio nega por incapacidade de os pressentir, apesar de os carregar no seu seio, e porque esta negação é uma condição indispensável para a manutenção da mentalidade especial pela qual existe.[8]

Guénon foi um escritor prolífero. Publicou dezassete livros durante a sua vida, e pelo menos oito colecções e compilações apareceram desde a sua morte. A oeuvre exibe alguns motivos e preocupações recorrentes e funciona, de certa forma, como um conjunto. A compreensão da tradição de Guénon é a chave do seu trabalho. Tão cedo como 1909 encontramos Guénon a escrever sobre “… a Tradição Primordial que, na realidade, é a mesma em qualquer parte, indiferente às diferentes formas que toma, de modo a servir a todas as raças e a todos os períodos históricos.”[9] Como o tradicionalista Inglês Gai Eaton referiu, Guénon

acredita que existe uma Tradição Universal, revelada à humanidade no início do presente ciclo temporal, mas parcialmente perdida… a sua principal preocupação não é tanto o detalhe das formas desta Tradição e a história do seu declínio, mas sim o seu núcleo, o puro e inalterável conhecimento que é ainda acessível ao homem através dos canais providenciados pela doutrina tradicional…[10]

A existência de uma Tradição Primordial incorporando um conjunto de princípios metafísicos e cosmológicos imutáveis, a partir dos quais derivam uma sucessão de tradições que os expressam através de formas determinadas por uma dada revelação e pelas exigências de uma situação particular, é axiomático na obra de Guénon.[11] É um princípio primeiro que não admite argumentos; nem requer qualquer tipo de “prova” ou “demonstração”, histórica ou qualquer outra.

O trabalho de Guénon, desde os seus primeiros escritos em 1909, pode ser visto como uma tentativa de dar uma nova expressão e aplicação aos princípios intemporais que suportam todas as doutrinas tradicionais. Nos seus textos, ele cobre um vasto terreno – o Vedanta, a tradição Chinesa, o Cristianismo, o Sufismo, o folclore e a mitologia de toda a parte do mundo, as tradições secretas gnósticas, a alquimia, a Cabala, etc., procurando sempre desenterrar os seus princípios basilares e mostrá-los como manifestações formais da Tradição Primordial. Alguns temas chave percorrem todos os seus escritos e são reencontrados, vezes sem conta, em noções como: o conceito de que a metafísica transcende todas as outras ordens doutrinais; a identificação da metafísica e a “formalização”, de certa forma, da gnosis (ou jñana se preferirmos); a distinção entre os domínios exotéricos e esotéricos; a superioridade hierárquica e infalível do conhecimento intelectivo; o contraste entre o Ocidente moderno e o Oriente tradicional; a rotura espiritual da civilização Europeia; a visão cíclica do Tempo, baseada amplamente na doutrina Hindu dos ciclos cósmicos; e uma visão contra-evolucionária da história.

Guénon reuniu doutrinas e princípios de diversas alturas e lugares enfatizando, no entanto, que o objectivo era o de uma síntese que procurasse, em elementos formalmente divergentes, a sua unidade principial, ao invés de uma síntese que forçasse formas incongruentes numa amálgama artificial. Esta distinção é crucial, não só para o trabalho de Guénon, mas para o tradicionalismo como um todo. [12]

Guénon recorria repetidamente às sabedorias Orientais, acreditando que apenas no Oriente as várias tradições sapienciais se mantinham relativamente intactas. É importante não confundir esta tendência para o Oriente com o tipo de exotismo sentimental tão em voga actualmente. Como referiu Coomaraswamy,

Se Guénon deseja que o Ocidente se vire para a metafísica do Oriente, isto não se deve ao facto de eles serem Orientais mas por ser metafísica. Se a metafísica “Oriental” difere da “Ocidental” – então uma delas não será metafísica.[13]

Um dos tradutores de Guénon referiu o mesmo ponto, sugerindo que se Guénon se virou tantas vezes para o Oriente foi porque o Ocidente está na posição

das virgens ingénuas que, ao fazer vaguear a sua atenção para outras direcções, permitiram que as suas lâmpadas se apagassem; de modo a reacender o fogo sagrado, que na sua essência é sempre o mesmo onde quer que esteja a arder, elas têm de recorrer às lâmpadas ainda acesas.[14]

O contraste entre as riquezas das civilizações tradicionais e o empobrecimento espiritual da Europa moderna soa como um refrão através das obras de Guénon. Em todo o seu trabalho

a missão de Guénon era dupla: revelar as raízes metafísicas da “crise do mundo moderno” e explicar as ideias por trás dos autênticos e esotéricos ensinamentos que ainda se mantinham vivos… no Oriente.[15]

Para aqueles que aceitam as premissas de Guénon, o seu trabalho é uma voz que grita no ermo Europeu. No entanto, tal como Schuon e Perry focaram, a função de Guénon não pode ser denominada estritamente de “profética”, uma vez que a era profética há muito terminou. Refere Schuon:

Se no plano doutrinal o trabalho Guenoniano tem o selo de unicidade, não será desprovido de interesse referir que tal não se deve a uma natureza mais ou menos “profética” – uma suposição que é excluída e que Guénon, ele próprio, rejeitou – mas sim a uma excepcional conjectura cíclica, cujo aspecto temporal é este “fim do mundo” em que vivemos, e cujo aspecto espacial é – pela mesma razão – a convergência forçada de civilizações.[16]

Apesar de convicto da sua própria realização intelectual da verdade, Guénon nunca assumiu o papel de um mestre espiritual; ele recusava constantemente aqueles que lhe pediam iniciação.[17]

Como outros tradicionalistas, Guénon não entendia o seu trabalho como qualquer tipo de ensaio criativo ou de “originalidade” pessoal, enfatizando repetidamente que no domínio da metafísica não existe espaço para qualquer tipo de “considerações individualistas”. Ele certamente não se via a criar uma nova filosofia ou uma nova escola de pensamento. (Se por vezes é necessário falar de uma “escola” tradicionalista, isto é apenas por conveniência.) Numa carta que enviou a uma amigo, Guénon escreveu, “Eu não tenho qualquer outro mérito para além de ter procurado expressar, o melhor que as minhas capacidades permitiram, algumas ideias tradicionais.”[18] Quando relembrado do número de pessoas que foram profundamente influenciadas pelas suas obras ela respondia calmamente, “… tais disposições tornam-se uma homenagem às doutrinas que expusemos de uma forma que é totalmente independente de qualquer consideração individualista…”.[19] O papel de Guénon foi o de relembrar a um mundo esquecido, “de uma forma que pode ser ignorada mas que não pode ser refutada”, os princípios primeiros e restaurar um sentido perdido do Absoluto”.[20]

Ananda Coomaraswamy era uma figura bastante mais pública do que René Guénon, mas aqui vamos nos concentrar menos em questões bibliográficas e mais em algumas considerações relativas à influência e importância do seu trabalho. Pelo final da sua vida, Coomaraswamy era fluentemente versado nas Escrituras, em mitologia e nas doutrinas e artes de muitas diferentes culturas e tradições. Ele foi um académico surpreendentemente erudito, um profundo pensador e um distinto linguista. Foi um prolífero escritor, podendo uma completa bibliografia referir mais do que um milhar de itens em estudos geológicos, teoria e história da arte, línguas e filologia, teoria social, psicologia, mitologia, religião e metafísica. Viveu em três continentes e manteve muitos contactos, quer pessoais, quer profissionais, com académicos, antiquários, artistas, teólogos e praticantes espirituais de todo o globo.

Podemos discernir na vida e obra de Coomaraswamy três interesses principais que moldaram as suas ideias e textos: uma preocupação com questões sociais e políticas relacionadas com as condições de vida e trabalho do dia a dia, e com as relações problemáticas do presente com o passado e do “Oriente” com o “Ocidente”; um fascínio pelas artes e ofícios tradicionais que o impeliram para um ambicioso e imenso empreendimento académico; e, finalmente, uma emergente preocupação com questões religiosas e metafísicas que foram resolvidas num “equilíbrio único de convicção metafísica e erudição académica”.[21]

Permitindo-nos alguma simplificação, podemos distinguir três “papéis” na vida intelectual de Coomaraswamy: comentador social e Indologista, historiador de arte Asiática e filósofo perenialista. Cada um destes papéis foi dominante durante um determinado período da sua vida. No entanto, as suas preocupações iniciais tomaram um novo rumo quando, após o contacto com o trabalho de Guénon, atingiu um profundo entendimento tradicionalista.

A influência de Guénon foi decisiva. Coomaraswamy descobriu os escritos de Guénon através de Heinrich Zimmer por meados do final dos anos 20 e, alguns anos mais tarde, escreveu,

…não existe nenhum autor vivo na Europa moderna mais importante do que René Guénon, cuja tarefa tem sido expor a tradição metafísica universal que sempre foi a fundação essencial de todas as culturas anteriores, e que representa a base indispensável para qualquer civilização digna desse nome.[22]

Vários comentadores detalharam as influências criativas recíprocas que se estabeleceram entre os dois autores.[23] Não nos deteremos neste assunto de novo. No entanto, vale a pena referir que Coomaraswamy disse a um dos seus amigos que ele e Guénon estavam “em pleno acordo nos princípios metafísicos”, o que, é claro, não excluía algumas divergências de opinião no que diz respeito às aplicações destes princípios no plano fenomenológico.[24]

O amadurecido Coomaraswamy dos últimos anos pode ser encontrado nos seus geniais trabalhos sobre o Vedanta e os escolásticos e místicos Católicos.[25] O seu trabalho sobre as concepções de arte sagrada das tradições Platónica, Cristã e Índia é igualmente uma obra sem rival. Algum do seu trabalho é, no entanto, labiríntico e de difícil acesso. É muitas vezes carregado de detalhes técnicos e subtilezas linguísticas e filológicas que testam a paciência de alguns leitores. Sobre a sua própria metodologia como exponente de metafísica, Coomaraswamy escreveu,

Escrevemos de um ponto de vista estritamente ortodoxo… esforçamo-nos para falar com uma precisão matemática, sem nunca utilizarmos palavras da nossa autoria, ou fazer qualquer afirmação cuja autoridade não possa ser citada por capítulo e verso; desta forma, tornando a nossa técnica caracteristicamente Indiana.[26]

Por vezes desejamos que a documentação do capítulo e do verso não fosse tão vasta! Coomaraswamy foi muito mais escrupuloso que Guénon a este respeito, o último por vezes ignorando a minúcia académica, o que expôs algumas das suas pretensões à crítica académica.

Coomaraswamy trouxe para o estudo da metafísica tradicional, da arte sagrada e da cultura religiosa, um sentido estético e uma aptidão académica que não era encontrada em Guénon. O Francês não tinha, como observa Reynolds, “uma grande sensibilidade para as culturas humanas”.[27] De certa forma, Coomaraswamy traz os princípios sobre os quais Guénon escreveu para um nível mais humano. O seu trabalho evidencia um maior sentido da história e um sentimento para com as circunstâncias diversas e concretas da experiência humana. Existe, ainda, um sentimento de presença pessoal nos trabalhos de Coomaraswamy, o qual é inexistente na obra de Guénon, a qual, pelo menos para alguns autores, surge como algo abstracto e rarefeito. Como referiu Gai Eaton, passar de Guénon para os textos de Coomaraswamy é como que “… descer para um clima bastante mais agradável, mantendo-nos no mesmo país… O luzir gelado é substituído por um brilho mais quente, a atitude de um calmo desdém para com todas as coisas modernas através de uma indignação mais humana.”[28] Whitall Perry contrasta os diferentes papéis através de uma metáfora que teria sido muito apreciada por ambos:

Guénon foi como que o eixo vertical de uma cruz, fixa com precisão matemática às realidades imutáveis e às suas aplicações imediatas no domínio das ciências cosmológicas; por seu lado, Coomaraswamy era o complemento horizontal, expandindo estas verdades através dos vastos campos das artes, das culturas, das mitologias e dos simbolismos: verdade metafísica num lado, beleza universal do outro.[29]

Tal como Guénon antes dele, Schuon envolveu uma capa de anonimato em torno da sua vida pessoal. (Relembre-se a observação de Coomaraswamy sobre Guénon: “a coisa menos importante relacionado com Guénon é a sua personalidade e a sua biografia… Na verdade, ele tem a invisibilidade que é própria ao filósofo completo…[30]) Desde uma tenra idade, Schuon dedicou-se ao estudo de filosofia, religião e metafísica, lendo os clássicos e os trabalhos modernos da filosofia Europeia, e a literatura sagrada do Oriente. De entre as fontes Ocidentais, Platão e Eckhart deixaram uma profunda impressão, enquanto que o Bhagavad Gita era a sua leitura Oriental favorita. Mesmo antes de se mudar para Paris, Schuon teve contacto com os textos de Guénon, com quem se correspondeu durante vários anos e que conheceu mais tarde no Cairo. O trabalho de Guénon “serviu para confirmar a sua própria rejeição intelectual da civilização moderna enquanto que, simultaneamente, provocava um aguçar do seu entendimento espontâneo dos princípios metafísicos e das suas aplicações tradicionais.”[31] O ênfase desta afirmação é importante. Schuon não foi um discípulo de Guénon cujos escritos serviram apenas para ajudar a clarificar um conhecimento já obtido. Por esta razão, não é adequado rotular o pensamento de Schuon como “Guenoniano”. De facto, em muitos aspectos, Schuon ultrapassa o seu predecessor na exposição do eterno dharma. (De qualquer das formas, é importante relembrar que, “Seguir Guénon não é seguir o homem, mas seguir a luz da verdade tradicional…”.[32])

Schuon combinou em si algo das qualidades de Guénon e de Coomaraswamy. A sua obra inclui as dimensões psíquicas, morais e estéticas que não são encontradas nos textos de Guénon. Como referiu Jean Tourniac,

Un autre écrivian, M. Frithjof Schuon, devait, pour sa part, développer l'exégèse spirituelle des formes traditionnelles dans une série d'ouvrages d'un genre différent de ceux de Guénon, ourages de "coloration" ...le mot n'est pas excessif, car la beauté et al couleur jouent un rôle particulier dans l'oeuvre de F. Schuon...plus "christique" que ceux de Guénon qui, eux, s'en tiennent d'abord, et essentiellement, à la définition des mécanismes principiels invariables.[33]

O contraste com Guénon é claramente visível no estilo e tom de linguagem. Se as exposições de Guénon podem ser referidas como “matemáticas”, as de Schuon poderão ser descritas como “musicais” – isto, é claro, não implicando qualquer deficiência na precisão, mas sim a adição da dimensão da Beleza. Como observou Nars em relação à obra de Schuon,

O seu tom de autoridade, clareza de expressão e uma “alquimia” que transmuta a linguagem humana de forma a permitir que esta expresse a mais profundas verdades, torna-a uma expressão única da… sophia perennis…[34]

Marco Pallis refere-se àquilo que ele designa por “o dom das línguas”: “…a habilidade, ou seja, o dizer e compreender os vários dialectos através dos quais o Espírito escolheu para se comunicar… o poder de penetrar todas as formas tradicionais…[35]

Tal como Guénon, Schuon parece ter tido uma visão intuitiva dos princípios metafísicos e cosmológicos, sendo, no entanto, menos afoito a subordinar factos a princípios, de uma forma que deixaria o seu trabalho vulnerável a ataques do meio académico. Na obra de Guénon sente-se, por vezes, uma impaciência e um desdém para com considerações empíricas e históricas. O compromisso de Schuon para com os primeiros princípios não é menos firme, mas ele tem muito mais sensibilidade para com as exigências e a diversidade da experiência humana e com as texturas espirituais de diferentes civilizações. Neste sentido, ele está mais próximo de Coomaraswamy com quem partilha ainda um olho desperto para as riquezas espirituais da arte tradicional. Apesar de extraordinariamente erudito, a abordagem de Schuon era menos académica do que a de Coomaraswamy, menos carregada por minúcia técnica e pelas sempre prolíferas qualificações que, por vezes, tornavam o trabalho de Coomaraswamy algo semelhante a um percurso de obstáculos. Como escritor, ele é mais discursivo e fluído, e mais poético do que, quer Guénon, quer Coomaraswamy.

Para Schuon, o estudo da tradição significou, em primeiro lugar, o estudo da religião no seio de uma estrutura metafísica. O trabalho de Guénon fixou-se em questões de princípio e no repositório arcano de sabedoria metafísica. Os interesses de Coomaraswamy eram muito abrangentes mas, na maioria dos casos, fundados na sua preocupação das relações entre a verdade, a beleza e o bem. Schuon, por seu lado, move-se num universo sem limites, interessando-se por todos os aspectos da vida espiritual. Ele escreveu sobre todas as dimensões da religião – doutrinal, ética, psicológica, histórica, social, estética, etc. Ele está com o mesmo à vontade, quer nas maiores subtilezas abstrusas da exposição do conhecimento metafísico de Eckhart, quer nas mais simples devoções do camponês Europeu. A explicação da distinção entre o exotérico e o esotérico é fundamental na obra de Schuon mas, ao contrário de Guénon, ele não se restringe apenas ao último. Os seus livros estão mais em sintonia com as exigências legítimas das formas religiosas e das ortodoxias teológicas do que os dos seus precursores. Ele situa os aspectos exotéricos e os esotéricos da religião numa estrutura que coloca cada um no seu lugar.

Ao escrever sobre as obras de Guénon e de Coomaraswamy, Whitall Perry sugeriu que,

O complemento e o toque final deste testemunho estavam ainda por ser realizado na mensagem de Schuon, aparecendo da esfera da Religio Perennis, em contra-distinção com a Philosophia Perennis que era o legado das outras duas. A sua foi o terceiro pólo, necessário para completar o triângulo e integrar o trabalho numa base operativa.[36]

Existe uma nobreza de espírito no trabalho de Schuon que o torna muito mais do que um poderoso corpo de ideias: é uma theoria profundamente comovedora que vibra nas profundezas do nosso ser. Sem dúvida, ele é o mais sublime metafísico da nossa era. Não é sem razão que Whitall Perry comparou a obra de Schuon com a de Platão e Shankaracharya.[37] Na obra de Schuon encontramos a mais rica, autoritária e mais ressonante expressão da sophia perennis nos tempos modernos. Podemos tomar de empréstimo as seguintes palavras, usadas para Mestre Eckhart, mas igualmente válidas para Schuon:

Sendo totalmente tradicional no mais puro sentido da palavra e, por essa razão, perene, a doutrina que expõe nunca deixará de ser contemporânea e sempre acessível para aqueles que, naturalmente insatisfeitos com simplesmente viver, desejam saber como viver, independentemente do tempo e do lugar.[38]

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