domingo, 22 de julho de 2007

Carta aberta sobre a Tradição

Neste texto resumem-se os principais aspectos focados pelo professor James S. Cutsinger no seu artigo “An Open Letter on Tradition”, publicado na revista Modern Age em 1994. O artigo pode ser lido na sua totalidade e na sua língua original (inglesa) na página pessoal do autor [ler artigo].

O professor Cutsinger começa por sublinhar as dificuldades sentidas por um Tradicionalista quando solicitado para falar sobre a tradição, sendo confrontado com a necessidade de encontrar palavras novas para dizer algo de novo sobre o que é muito antigo. De facto, caso este seja verdadeiro com os seus princípios, ele irá insistir que o antigo é, na realidade, o novo, “que a antiguidade e a continuidade da tradição são os meios razoáveis para uma genuína transformação”.

O artigo, como explicado pelo professor Cutsinger, foi escrito a pensar numa audiência muito específica, nomeadamente os académicos liberais, os quais são duros críticos da posição defendida pelo autor. Assim, por forma a não ser acusado de falar apenas para os que defendem a sua posição, o tema foi analisado de uma forma estritamente metafísica, ou seja, penetrando no núcleo essencial do problema, abordando, ainda, questões práticas muito directas como: “Qual é exactamente a razão de ser da tradição? O que há a ganhar com a tradição na vida contemporânea?”

O autor começa por apresentar a sua definição de tradição, considerando que esta deve ser considerada paralelamente à revelação, sendo a primeira horizontal e a segunda vertical. Isto significa que a revelação é a projecção de Deus no espaço, enquanto que a tradição é a extensão da revelação ao longo do tempo [ver Tradição [1]]. Revelação e tradição são assim consideradas como duas partes de um único movimento de Deus para o homem.

Esta visão do termo tradição é, assim, consistente com o seu significado usual de acção ou resultado de uma passagem ou transmissão de algo. Salienta o autor que, da mesma forma, é importante clarificar que nem tudo o que é transmitido é tradicional, pode ser igualmente o simples resultado de costumes e hábitos. “Um qualquer costume pode ser mais antigo do que uma particular tradição. A única [transmissão] essencial é o contacto com a revelação e, assim, com Deus.”

A posição assumida pela maioria dos críticos aponta as suas baterias para o facto de não ser possível distinguir a revelação, mesmo que se admita a sua existência, ou seja, que qualquer um se pode aclamar como autoridade revelada. Consideram, ainda, que toda a história do pensamento humano gira em torno desta constatação. Que é uma história de competição pelo reconhecimento da exclusividade da verdade, de uma luta pelo poder, justificando o mesmo através do divino. Admitem ainda que toda a tradição é, na realidade, a tradição do homem, cujas opiniões são moldadas não só pelas suas necessidades psicológicas, mas também pelas estruturas sociais do seu tempo.

Como encarar então estas críticas? Segundo o autor, a primeira coisa óbvia a reconhecer é que as formas tradicionais podem ser abusadas e mal utilizadas, como aliás tem acontecido demasiadas vezes. A religião em particular tem sido, em muitos casos, o meio para perpetuar a ligação ao interesse próprio e ao aumento do ego, aspectos contra os quais pretende ser oposta. Da mesma forma, supostas inspirações divinas foram utilizadas para fins puramente políticos. Mas poderão estes factos históricos, apesar de odiosos, ser relevantes para a existência de uma realidade espiritual e, assim, do verdadeiro significado das tradições reveladas?

As críticas poderão estar correctas mas apenas provam que o homem sofreu a Queda, não provam que não existe qualquer revelação. Este erro revela uma clara decadência intelectual do homem moderno e uma total incapacidade para pensar metafisicamente e no que diz respeito ao essencial. O autor tenta de seguida demonstrar esta afirmação.

Começa por analisar uma das críticas mais recorrentes: “todos os homens são inevitavelmente condicionados pela sua situação histórica”, indicando que esta afirmação revela uma completa incompreensão sobre a natureza do homem e sobre o que pode e não pode ser conhecido, sendo, na realidade, uma clara contradição. Quem pode saber o que o resto de nós não pode saber?

De facto, por forma a poderem afirmar que todos os homens são inevitavelmente condicionados à sua situação histórica, os críticos teriam de ter escapado por uma fracção de segundo a esta condição, deixando de ser homens ou de os homens estar sujeitos a esta mesma condição. No primeiro caso, isso significaria que estes seriam deuses, o que, obviamente, não é a sua pretensão. Aqui reside a falta de lógica da questão pois, se ninguém pode saber mais do que o relativo, como poderá alguém clamar que tal é, de facto, assim.

O diagnóstico deste problema, diz-nos o autor, pode ajudar a compreender a importância da tradição, ou seja, a lembrança da ligação do homem ao tempo. No seio de todas as mudanças interiores e exteriores do homem, a razão de ser da tradição é a de nos fornecer aberturas para o eterno. “Um gesto ritual, a impecável face de um ícone, a postura de um mestre espiritual, um lugar de peregrinação, as palavras cantadas de um texto sagrado, a flor. Tudo isto são formas da tradição. Tudo são ecos e reflexos de Deus”. A tradição existe para nos relembrar de quem somos, criados à imagem de Deus, a partir do real e do irreal, concebidos como uma ponte entre o finito e o infinito, o absoluto e o relativo.

Mas o homem afasta-se constantemente desta sua função, considerando muito mais fácil seguir o fluxo dos fenómenos à sua volta do que resistir, convencendo-se de que tudo fluí, que tudo é relativo.

Isto não significa que o caminho oposto não é muito difícil, de facto, o desejo de evitar a disciplina que deve acompanhar todo o contacto com Deus não é nada de recente. “O absoluto, pela sua natureza, requer a totalidade do homem. E ninguém gosta de ver o seu ego destruído. A santidade nunca foi fácil, e todos os que pensam o contrário são românticos, não tradicionalistas. O que é novo na mentalidade moderna não é a sua fraqueza, mas sim a sua desaprovação”. O homem moderno elevou a preguiça individual a uma fatalidade universal. A ignorância deu lugar ao agnosticismo, o pecado à doença, e a própria virtude à necessidade de perdoar.

Antes de apresentar as suas conclusões, o professor Cutsinger foca ainda um outro problema, sugerindo que a tradição continua a ser confundida com algo que é apenas cronologicamente antigo, sendo os tradicionalistas acusados de serem reaccionários. Por esta razão é fundamental insistir que a tradição em causa refere-se apenas a transmissões iniciadas em Deus, sendo a definição metafísica de tradição como tal, distinta da exposição doutrinal de qualquer tradição.

É óbvio, no entanto, que esta tradição não poderá ser outra coisa senão antiga, não sendo possível descobrir uma era em que esta não estivesse presente, resultando este facto da própria natureza infinita de Deus. Por esta razão, não será estranho encontrar sinais da tradição em qualquer parte e em qualquer altura que procurarmos. Mas a universalidade e a antiguidade são acidentais do ponto de vista metafísico, sendo os resultados da tradição, não a sua causa. Os Tradicionalistas têm assim a árdua tarefa de “defender o que é antigo, não como antigo mas como verdadeiro, como uma expressão temporal de algo que está simplesmente a brotar continuamente a partir da eternidade, sem pai, sem mãe, sem descida, não tendo nem princípio nem fim, mas criado como que para o Filho de Deus”.

Concluindo, o professor Cutsinger refere ainda que não há como contornar o facto de sermos talhados para o absoluto, caso contrário não seríamos nada, e que ser humano na sua plenitude implica ter conhecimento desta verdade. Os modernistas e pós-modernistas nas suas críticas não podem deixar de procurar falar verdade e, assim, não conseguem evitar ser metafísicos. A falta de lógica das suas posições atestam exactamente este facto. “Pois é precisamente quando as suas posições implodem que eles atestam, apesar de contra eles próprios, a razão subjacente da tradição, a qual é transmitir o que precisamos por forma a nos tornarmos o que somos. Eles confessam que ao abdicar da sua vocação como projecção de Deus, o homem precisa agora de ajuda exterior. Ele depende de símbolos da verdade, os quais estão enterrados no interior do seu coração”. E quanto às objecções de falta de critério e protestos contra o facto de a revelação estar longe de ser auto-evidente, contra as acusações de que estas posições são muito abstractas, pretensiosas e antiquadas, apenas se pode dizer o seguinte: “Eles continuarão necessariamente a falar como homens – homens caídos que, como eu, anseiam pela verdade que liberta, para os quais a tradição na vida contemporânea pode ainda tornar completos”.

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